Em matéria do que se chamou "Acordo Ortográfico", sou contra. Absolutamente contra. Nem morto de morte matada ou morrida.



27/11/08

Perdas desconhecidas

Há formas de titular notícias que as torna verdadeiramente assassinas. Esta noite a Agência Financeira, no seu site on line, anunciava: «Roubos e erros em «hipers» e «supers» são 1% do volume de negócios».
Claro que se um dono de hiper ou de super lê uma coisa destas sente ganas de estrafegar a Agência Financeira, acusado de viver à conta do roubo e do erro.
Mas, pensando melhor, poderia ser bem pior! Afinal, tal como se lê, é só um negócio de roubos e erros em 1% ! Nem vale a pena um desmentido...
Lendo a notícia alcança-se, entretanto, a sua compreensão: ela diz ser sobre «perdas desconhecidas» nas grandes superfícies. É caso para dizer ah! É um tudo nada um outro mundo.

23/11/08

Os preciosos filhos

Estive a ler esta manhã a introdução que Pedro Barreiros escreveu às Elegias Chinesas de Camilo Pessanha e a homenagem que ali presta a quantos, como António Quadros, souberam ver na escrita do autor da Clepsidra tudo o que não enxergam «os hermeneutas do óbvio».
Texto a escorrer-se sobre a língua e absorto pelo saber, póstumo e justificativo, se Pessanha dominava ou não a linguagem «dos Celestes», no dizer admirável de António Osório de Castro, há nele a passagem em que alude à «doce papiaçan macaísta», esse forma frutífera de dizer que os trópicos modelaram e naquelas remotas paragens do sol nascente se amancebou com «a música ebúrnea do baralhar das peças de ma jong».
Mas há, a acompanhar-me como um bater amigável de mão familiar nas costas, a animar este dia em que o sol sorri, a referência às boas maneiras que obrigam quem fala a referir-se si próprio com «expressões humildes e depreciativas», enquanto «a pessoa do interlocutor deveria ser tratada com os mais pomposos epitetos».
O exemplo, esclarecedor porque eloquente, é a forma risonha de aprender, que torna o mestre o amigo. Assim «quantos preciosos filhos tem», receberia a resposta «cinco estúpidos porquinhos».

16/11/08

A contemplação da palavra

Uma das maravilhas ultramarinas do modo de ser português é a palavra encontro pronunciar-se como café. Dois amigos que se querem rever perguntam-se quando poderão tomar um café. Quem anda da vida desencontrado sente-se diante de uma chávena de café. Na aridez da monotonia social em que nada se encontra porque nada surge, vive-se a vida de café. Por outro lado, lentamente, foi-se perdendo o chá e com ele as boas maneiras, foi-se descafeinando a existência, tornando-a uma série televisiva interminável, a vida própria real subjugada à vida irreal da personagem dos outros, obrigado mas à noite quero dormir não tomo café. Uma das maravilhas da língua portuguesa, carregada de História e ansiosa de futuro, é cada palavra ser uma floresta mágica de sentidos, as palavras terem odor, escorrerem significado, assustarem de tão densas, cada uma um grito visigótico na noite, uma negra queimada ao entardecer e a contemplação moura ante a palavra proibida de dizer-se.