Em matéria do que se chamou "Acordo Ortográfico", sou contra. Absolutamente contra. Nem morto de morte matada ou morrida.



30/07/08

Altere-se a pontuação

Altere-se a pontuação! Invente-se o ponto dubitativo, coisa diferente do ponto de interrogação, o ponto de suspeita, mais distinto ainda dos outros dois, e ainda o ponto da incerteza.
Transforme-se o ponto que é de exclamação e admiração, e por vezes jeito de mandar, em forma suplicante de dizer, o ponto da saudade ansiosa, chamativa.
Suprimam-se de vez os pontos finais, para que a noite sem amanhã seja o ventre de toda a literatura, a infinita biblioteca. Para quê parágrafos quando há uma só frase para uma mesma ideia, o sem fim do discurso, a permanente indiferença ao que se diz?
Vão os parentesis, curvos, rectos ou outros que tais, os traços a intercalar frases, para que nenhum vocábulo, nenhum conceito, nenhum sentimento se possa esconder atrás do biombo do entretanto, proibam-se por decreto os pés de página ou fins de página, ou qualquer forma de criar rodilhas de ditos a ensarilharem-se no escrito, inúteis quando não lidos, prejudiciais quando alguém os lê.
Altere-se a pontuação! Que nem fiquem as vírgulas, essas cedilhas que defendem os bofes do leitor de planície das longas passadas do escritor montanheiro, factor de guerra civil entre escritores leitores e revisores. Haja paz!
Altere-se a pontuação! Deponha-se o reino tirânico dos imperativos categóricos e mandões do pontua aqui, virgula além, separa por traços, abre parêntesis e não esquecer de o fechar, permaneça, enfim, a doçura, a delicadeza, o ponto e vírgula sim, o ponto e vírgula, essa figurinha tímida e querida que pede licença para interromper a meio, sem chegar verdadeiramente a interromper.

07/07/08

Pedras, fragas, restos

Já o tinha comprado faz tempo e havia começado a ler; mas pusera-o de lado por embirração pura, por me cheirar a espólio refoicilado, um cheiro a interminável arca de infindáveis inéditos, como surgem agora nas mãos de rapaces herdeiros e de ansiosos editores.
Esta noite fui buscá-lo à pequena Babel que se acumula ao pé da cama, a pilha dos que hei-de ler, os livros que se arrumasse sentia estar a condená-los ao cemitério da estante. Falava do Teixeira de Pascoaes, que conhecera em Amarante «a bengalinha adiantando-se e abrindo caminho à bicada». Uma pessoa lê isto, e assim foi escrito pelo Alexandre O'Neill e sente o pica-pau ferindo o chão duro do caminho, e atrás «o meu poeta murmurava coisas, possivelmente pedras, fragas, restos do Marão por digerir».
Como se escreve maravilhosamente na língua portuguesa, tanto que um leitor sente-se ali mesmo, no lajedo e no empedrado, o andarilho, descarnado viandante, «um rosto de pedra atormentada», onomatopaicamente presente.
Não sei se esta noite conseguirei ler mais, mas mais não é preciso. Morreu o Dr. Joaquim. Faz tempo.