Acabei de ler a «Memória de Elefante» de António Lobo Antunes. É o seu primeiro livro, de êxito inesperado.
Lobo Antunes escreve e suprime e revê e corrige, num interminável contínuo de criação. Resultado: rara é a página onde não há um extraordinário modo de dizer um mundo de fealdade e de raivosa abjecção. Só ele não gosta deste seu livro e da galeria de monstros vivos que o povoam.
São, entre os entes humanos, delegados de propaganda médica de «simpatia impositiva», na «loquacidade demasiado delicada e bem vestida», «seres debitantes», «sempre-em-pés da boa educação», o velhote «digno com cara de ajudante de notário», «de óculos da espessura de pisa-papéis, que lhe aumentavam os olhos até às proporções de hirsutos insectos gigantes cercados de enormes patas de pestanas», «as damas de abundante busto boleado ao torno», a criancinha «vestido à maruja como macaco de realejo», os chulos nacionais «rondando nádegas em ademanes de hienas», o calmeirão no deboche desesperado a «afogar as misérias no mamalhal», a «dama obesa ocupada pela pirâmide de um enorme gelado obeso», «os cancerosos nas enfermarias agarrados ao mundo pelo umbigo da morfina», os «japoneses joviais cumprimentando-se uns aos outros numa linguagem de periquitos»; são, nos sentimentos, a «guinada de saudade violentamente física como uma víscera que explode», o «saciamento de jibóia», as «guinadas de azia e de gases que hesitavam entre o suspiro e o arroto»; é a vida vivida, como o casamento que «definhou de mocidade como outros de velhice, «os funerais, a massa consistente da família», «o cavalheiro idoso a tropeçar nas ceroulas na direcção da meta próxima do cancro da próstata e da última algália»; são até os próprios sentidos, convocados tristes, «os monótonos, merdosos e trágicos odores da fome e da miséria», o «lixo comestível», «o único cogumelo que enfeitava o hamburguer e que se assemelhava a um molar amarelecido à falta de dentífrico»; é «o dentista despovoador de gengivas», no louco masturbador compulsivo e exibicionista «o trapo de pele amarrotado do pénis», na inanidade juvenil «a geração do cogitus interruptus»; é o Portugal em que «já se nasce Inválido do Comércio e reduzimos as ambições ao primeiro prémio da Liga de Cegos João de Deus».
É, em suma, o amor do adormecerem «liquefeitos, numa moleza sem cor, náufragos jubilosos da ternura», «um casal em crise encrespado de silencioso ódio conjugal», o «polvo gelatinoso da depressão», o «repositório de aflições concentradas».
É, no fim, «a vontade de se vomitar a si próprio», ele, «espectador extasiado do próprio sofrimento».
Extraordinária escrita, magnífico mundo, infinito milagre sobreviver o Homem à Criação!